sábado, 30 de abril de 2011

33 - QUE VIVA O CORDEL! - O bípede

                 
                      
        O registo desta história
        que lhes vou aqui contar
        encontrei-o na memória
        dum acervo popular.

        Era um quadrúpede astuto,
        por entre as gentes andando,
        de todos o mais enxuto
        dos quadrúpedes do bando.

        Um dia, alguém lhe assestou
        um pontapé no focinho.
        Assustado, se empinou,
        dorido, a fazer beicinho.

        E, assim, bípede ficou,
        bendizendo a dor e o dano,
        pois, agora, diz: eu sou,
        como vocês, ser humano!

Quantos bípedes quejandos
        andam, neste mundo, ufanos,
        fazendo crer que seus bandos
são também seres humanos? 



José-Augusto de Carvalho
3 de Abril de 2007.
Viana do Alentejo * Évora * Portugal

33 - QUE VIVA O CORDEL! - A partilha do pão

                    
                    
            Na mesa, o pão repartido.
            Na fraterna divisão,
            cada parte é o quinhão
            que a cada um é devido.

            Não é diferente a fome
            por mim ou por ti sentida,
            por isso, em igual medida,
            cada um de nós o pão come.

            Assim está consagrado
            o princípio basilar
            e será desmascarado
            aquele que o violar.

            Aos farsantes e aos tiranos
            lhes digo que me cansei
            das mentiras que escutei
            sobre os direitos humanos.




José-Augusto de Carvalho
7 de Janeiro de 2007.
Viana * Évora * Portugal

33 - QUE VIVA O CORDEL! - A grande depressão

                
           
            Esta grande depressão
            mais parece um iceberg,
            pois das águas se soergue
            apenas uma alusão.

            Sob as águas, escondida,
            jaz a maior dimensão,
            numa estranha gestação
            de desgraça prometida.

            De ramo em ramo, atrevidos,
            passeiam-se os chimpanzés,
            metendo as mãos pelos pés,
            de prosápia convencidos.

            Em baixo, olhando os ufanos,
            os homens, cantam em coro,
            o direito ao desaforo
            dos seus direitos humanos...



José-Augusto de Carvalho
15 de Março de 2007.
Viana do Alentejo * Évora * Portugal

sexta-feira, 29 de abril de 2011

05 - ESTA LIRA DE MIM!... * O Elogio da Mãe

                       
           
             Que dia pode haver que te consagre,
            se há tanto os dias todos já são teus?
            Se todos nós, quer crentes, quer ateus,
            em ti reconhecemos o milagre?

            Teu ventre é o sacrário da promessa
            que sempre, imperecível, é cumprida,
            na vida que se dá de novo à vida,
            num hino de louvor que nunca cessa.

            O teu regaço terno embala o mundo,
            o mundo que te esquece e que se perde
            na horas em que mais de ti carece.

            Do céu azul ao pélago profundo,
            do  luto preto à esperança verde,
            até ausente, és tu quem permanece.



Viana do Alentejo * Évora * Portugal
José Augusto de Carvalho

quinta-feira, 28 de abril de 2011

05 - ESTA LIRA DE MIM!... * Livro aberto



                                                           Para a Lílian Maial
 

    Nas páginas do tempo, em livro aberto,
    o testemunho inscreve a rebeldia:
    a solidão da sede do deserto
    esconde sempre um poço de água fria.

    As coisas nunca são o que parecem.
    Do céu, o vento as nuvens afugenta.
    Se oásis de ternura reverdecem,
    que poço de água fria os dessedenta?

    Que Estrada de Damasco, oh Síria antiga,
    por entre os desencontros dos abutres,
    no tempo sobrevive livro aberto?

    Que poço de água fria te mitiga,
    na solidão da sede do deserto,
    se há tanto tempo só de sal te nutres?



José-Augusto de Carvalho
3 de Abril de 2009.
Viana de Fochem+Évora*Portugal

quarta-feira, 27 de abril de 2011

05 - ESTA LIRA DE MIM!... * A caminhada



                                                      Para o Poeta Herculano Alencar, meu Amigo

Na palavra é que vou e me enfrento,
neste outono amarelo da vida.
Nas rajadas infrenes do vento
meu destino de folha caída.

No bornal, a palavra atrevida
na saudade que ainda acalento:
primavera no sonho tecida
com delírios de sal e fermento.

Ajudando o meu passo indeciso,
o cajado me ampara e tacteia
o caminho que experto preciso.

Só o sol, que no céu alardeia
egotismos de instante Narciso,
se diverte e de luz me encandeia.
 

José-Augusto de Carvalho
Viana de Fochem
18 de Outubro de 2009

sexta-feira, 22 de abril de 2011

06 - O Livro das Reflexões de Gabriel de Fochem * XVIII






Deixa assentar o pó.
Foi só um torvelinho,
um torvelinho só,
perturbando o caminho.
É vulgar, numa estrada,
algo de estranho haver.
Mas, quando vamos ver,
vemos que não é nada.
São os rebates falsos
dos traumas ancestrais
inventado percalços.
Fantasmas que passais,
os nossos pés descalços
não param nunca mais!


José-Augusto de Carvalho
6 de Setembro de 2001.
Viana*Évora*Portugal

06 - O Livro das Reflexões de Gabriel de Fochem * XXI




Não sou muito nem pouco, acredita.
Sou, apenas e só, o que sou,
 a viagem aflita e finita
em que vou.
Não sou fogo nem água, nem ar.
E não voo e não nado e não ardo.
Talvez silvo de um dardo
que, sem alvo, perdeu o objectivo.
Ou talvez o sonhar
que está vivo
e receia acordar.

José-Augusto de Carvalho
7 de Setembro de 2001.
Viana*Évora*Portugal

06 - O Livro das Reflexões de Gabriel de Fochem * IX





 Sonho acordado o mesmo sonho antigo,
que vem desde o princípio disto tudo.
Fiz dele o meu caminho, que prossigo,
mas olho em derredor e não me iludo.
Em cada esquina, atento, o predador,
dissimulado, espreita a sua presa.
Montado o cerco, quem se pode opor,
às investidas vis e sem defesa?
De assalto, já tomaram a cidade.
Na praça antiga, ergueram o patíbulo,
onde, em sufoco e náusea, a dignidade
é mais violada do que num prostíbulo.
O reles e o primário por divisa!
E a presa, apetecível, agoniza...





José-Augusto de Carvalho
10 de Agosto de 2001 - 2 de Outubro de 2010

Viana * Évora * Portugal

06 - O Livro das Reflexões de Gabriel de Fochem * Reflexão VIII


O medo de morrer,
como se a morte fosse
um castigo a sofrer...
O tempo de nascer
sempre consigo trouxe
o tempo de morrer...


José-Augusto de Carvalho
7 de Agosto de 2001 - 2 de Outubro de 2010
Viana * Évora * Portugal

06 - O Livro das Reflexões de Gabriel de Fochem * XXVII

 Desenho de José Dias Coelho (Internet)



O Tudo e o Nada...
Assim, a contradição,
ei-la, exposta e desnudada,
sem disfarce ou distorção.
O Bem e o Mal.
Não envelheceu Mani.
Sempre o pão do teu bornal
há quem o queira p'ra si...
De um lado, as hostes celestes...
Do outro, as hordas infernais...
(o purgatório neutral...)
ambas envergando as vestes
dos instantes carnavais
duma farsa capital.


José-Augusto de Carvalho 
Redigido em 14 de Julho de 2001.
Corrigido em 10 de Junho de 2010.
Mani, filósofo persa, século III.

06 - O Livro das Reflexões de Gabriel de Fochem * XXIII




Direito escreverá por tortas linhas...
Que fórmula subtil
de se afirmar a Fé em louvaminhas!
Quem poderá, quer crie, quer aniquile,
ser sempre o Bem que prega o campanário,
até quando se vê o seu contrário?
Porquê a perfeição
usando a distorção?

José-Augusto de Carvalho
11 de Setembro de 2001 - 3 de Outubro de 2010
Viana * Évora * Portugal

06 - O Livro das Reflexões de Gabriel de Fochem * XVI



          
Esta indigência
ofende a inteligência!
Esta postura assumida
retrata com nitidez
uma visceral nudez
sem vergonha nem decoro:
andar-se, num desaforo,
sempre de mão estendida:
-- Uma esmola, por favor...
...que Deus lhe pague, senhor!...


José-Augusto de Carvalho
5 de Setembro de 2001.
Viana*Évora*Portugal

06 - O Livro das Reflexões de Gabriel de Fochem * XI



Vestiram de luto
as pedras medievas.
Quando a noite desce,
no luto perscruto
o imo das trevas,
que cresce, que cresce,
buscando o sentido
do luto vestido.


José-Augusto de Carvalho
3 de Setembro de 2001 - 2 de Outubro de 2010
Viana * Évora * Portugal

06 - O Livro das Reflexões de Gabriel de Fochem * X



São vómitos, senhor, são vómitos reais...
E fétidos, senhora, e fétidos de mais...
É alto o bastião, senhora, não temais...
E o fosso a transbordar, senhora, a transbordar,
impede a populaça hirsuta de atentar
contra a pureza em flor dos nossos esponsais.
Pressentimentos tenho e feios e ruins...
Senhor, que Deus nos guarde,
antes que seja tarde!
Senhora, não temais! Ainda há os mastins
sedentos de festins!
Senhor, que Deus nos guarde,
antes que seja tarde!
Senhora, não temais!
Para além das muralhas
da nossa fortaleza,
só há uns animais
famintos de migalhas
da nossa régia mesa...


José-Augusto de Carvalho
3 de Setembro de 2001 - 2 de Outubro de 2010
Viana * Évora * Portugal

06 - O Livro das Reflexões de Gabriel de Fochem * VI



Aos ombros carregamos
todos os nossos medos,
os medos que ocultamos
como se fossem trágicos segredos.
Que fado ou maldição
insiste em nos querer
nesta condenação,
a doer, a doer?...

José-Augusto de Carvalho
7 de Agosto de 2001 - 2 de Outubro de 2010
Viana * Évora * Portugal

06 - O Livro das Reflexões de Gabriel de Fochem * XXII



A sujeição do sujeito,
quer seja determinado,
quer seja indeterminado,
é causa, é gesto, é efeito
do abuso de predicado.
A astúcia que o verbo tem!
Como sujeita o refém!


José-Augusto de Carvalho
5 de Setembro de 2001 - 3 de Outubro de 2010
Viana * Évora * Portugal

06 - O Livro das Reflexões de Gabriel de Fochem * XXV




Sem manta por abrigo,
o céu sobre o meu dorso,
à deriva, prossigo.
Sem medo nem esforço.
À chuva, ao frio, ao sol,
instante o movimento.
Se o chão é lamacento,
não temo que me atole
buscando outro mais firme.
Comigo na bagagem,
pressinto diluir-me
no todo da paisagem.
E a singularidade
da minha condição
perde-se na voragem
duma pluralidade
onde as partes do todo
se esbatem nos devires do lodo...
Infinitude e caos - constante mutação.


José-Augusto de Carvalho
21 de Setembro de 2001 - 4 de Outubro de 2010
Viana * Évora * Portugal

06 - O Livro das Reflexões de Gabriel de Fochem * III




Recuso e no meu não florescem as manhãs.
Ao sol fraco e tardio,
abertas, as romãs
sangram num desafio.
Quis ser também assim, fugaz, a viva essência,
no tempo que me coube.
Se não pude ou não soube,
paciência...

José-Augusto de Carvalho
Agosto de 2001./Setembro de 2010.
Viana*Évora*Portugal

06 - O Livro das Reflexões de Gabriel de Fochem * XIV


Monte Alentejano, Internet

Caíram as sombras frias
sobre o espanto dos montes.
As fogueiras que acendias
nem ao sol de Agosto as contes!...
Hoje, os caminhos são outros.
Os montes ao abandono!
Cavalos, éguas e potros,
há muito dormem o sono
duma memória perdida
de ciganos à deriva...
Diz um senhor bem-falante,
a ressumar importância,
que tudo muda  -- É a vida!
E a memória, subversiva,
corrige: Olhai o desplante!
Deixai passar a ignorância!...

José-Augusto de Carvalho
5 de Setembro de 2001.
Viana*Évora*Portugal

32 - DO MAR E DE NÓS - II * A promessa jurada

Torre de Belém, Lisboa, foto internet


Deste cais de partida, diviso,
na distância, a promessa jurada.
Que ansiedade em minh'alma preciso
e me arranca das névoas do nada!
*
Em redor, o abandono ferido...
Onde o sal, onde o iodo destas águas?
E a guitarra de cordas de mágoas
derramando insistente gemido!...
*
Venham medos, angústias, procelas!...
Venham céus de negrume, sem astros!
Venha, até, o que nem imagino!...
*
Ai, se os ventos rasgarem as velas!...
Ai, se inúteis me forem os mastros,
que se cumpra este mar --- meu destino!

José-Augusto de Carvalho
23 de Agosto de 2010.
Viana*Évora*Portugal

11 - TUPHY, SEMPRE! * Imobilidade


Os fastos e as misérias
assombram a falésia
com sonhos descarnados
A branda maresia acaricia
o desencanto imóvel
No tempo das desoras
doendo a nostalgia
na angústia das palavras
à deriva


José-Augusto de Carvalho
Viana*Évora*Portugal

05 - ESTA LIRA DE MIM!... * Os mistérios do verbo

        

Os mistérios do verbo, imprecisos evolam,
no devir, os sinais --- desencontros e esperas.
Ansiedades de mim que em fogueiras se imolam
e renascem da cinza a florir primaveras.
*
São gorjeios na noite inventando as auroras,
madrigais irisando aguarelas de rimas!
Versos de alma, talvez, segredando-me as horas
em que vens, devagar, e o feitiço sublimas...
*
Foi o mar que te trouxe, embalada nas ondas,
polvilhada de espuma e promessas de sal...
E na barca de mim, à deriva e sem sondas,
naufraguei num ilhéu de pimenta e coral.
*
E os mistérios do verbo, aureolados de espanto,
encontrei-os no enleio em que sou e te canto.

José-Augusto de Carvalho
18-19 de Abril de 2011.
Viana*Évora*Portugal

06 - O Livro das Reflexões de Gabriel de Fochem * XXIV




O verbo em sinfonia.
O rito. A cor. A dança.
Pureza em harmonia.
Os corpos nus e lassos.
Uma vertigem mansa,
bordada de cansaços,
a infinitude alcança
dos siderais espaços.


José-Augusto de Carvalho
14 de Setembro de 2001.
Viana*Évora*Portugal

quinta-feira, 21 de abril de 2011

06 - O Livro das Reflexões de Gabriel de Fochem * XV



Os tempos do desatino
embotam as mentes lerdas,
presumindo-lhes que as perdas
são azares do destino.
Porque será que o destino
só embota as mentes lerdas
e nunca provoca perdas
a quem gera o desatino?

José-Augusto de Carvalho
5 de Setembro de 2001.
Viana*Évora*Portugal