segunda-feira, 9 de março de 2015

05 - ESTA LIRA DE MIM!... * Divagando




Nas margens do Vouga, a presença termal.
Respiro, no tempo, a memória amarela:
dos ontens distantes, um ténue sinal:
dos hojes, o rosto que a mágoa cinzela.

O vale verdeja. Humidade e suspiros.
A vaga esperança aos enfermos acena.
Veredas descobrem sossego e retiros
lavados de vento, a arfar cantilenas.

Perladas de mágoas, as águas do rio
espumam, noivando, incertezas de sal.
Angústias de ser… o fatal desafio
que tarda em cumprir-se país-Portugal.

Vaivém de marés… na distância adivinho
o pão levedado de alvura de linho.



José-Augusto de Carvalho
3 e 4 de Novembro de 2003.
Várzea, São Pedro do Sul

30 - NA ESTRADA DE DAMASCO * Posição





Que distracção! Confesso o meu pecado
de ter nascido sem pedir licença.
Dos longes donde vim, maravilhado,
nascer não é pecado nem ofensa.

Dos longes donde vim, na graça imensa,
nascer é o milagre revelado.
No grito da promessa, a recompensa
do sonho feito verbo conjugado.

Pecado é não cumprir a lei da vida,
é dizer não ao sol que inventa o dia
e à noite debruada de luar.

Pecado é esta lei animicida,
no sonho aniquilando a melodia
e o meu direito vivo de cantar.



José-Augusto de Carvalho
9 de Novembro de 2003.
Várzea, São Pedro do Sul


09 - IN MEMORIAM * Brasil




Eu soube do Brasil na minha meninice,
aqui, no meu torrão de angústias e de esperas.
A minha tia-avó, no sol das primaveras,
buscara longe o sol que vivo lhe sorrisse…

Levou só orfandade e pranto por bagagem,
Que mais, madrasta, a pátria amada lhe negou.
Menina e luto em mar de medo e de coragem,
a pátria prometida um dia desposou.

E tão constante foi, menina, o seu amor,
que, pura, deu à terra amada quanto tinha.
Há quanto tempo foi? Seja o tempo que for!

Há sangue brasileiro ainda igual ao meu,
sofrendo uma saudade ainda igual à minha
de um tempo que no tempo há muito se perdeu



José-Augusto de Carvalho
Março de 2004
Viana*Évora*Portugal

30 - NA ESTRADA DE DAMASCO * Ansiedade





Louvado seja Deus,
que fez a Terra  e os Céus,
só vejo fariseus
e eu no banco dos réus!

Passaram dois mil anos
E há os meus grilhões
e há os mesmos tiranos
e os mesmos vendilhões!

O tempo está cumprido!
A mentira vigora!
Temendo que se exponha,

o agonizante ungido
ainda o fim implora
do tempo da vergonha!




José-Augusto de Carvalho
Lisboa, 4 de Agosto de 1993.


32 - DO MAR E DE NÓS-2 * Brasil





Não temas que eu caminhe! A bússola é segura.
E a minha mão domina o leme com mestria.
O vento, de feição, garante a travessia.
E o teu olhar lucila até na noite escura.

Há muito que este mar conhece a barca lusa…
E não me vai perder em trágico baixio.
Agora já não há sereia que seduza…
A barca irá chegar às águas do teu Rio!

O largo mar será e sempre muito estreito…
Distâncias a vencer, meu único destino.
No verbo navegar só eu sou o sujeito…

Sossega o teu temor! Eu chegarei ao fim!
Procela e medo e mar há muito que domino.
Há séculos que sou o delírio de mim!...



José-Augusto de Carvalho
Abril de 2002.
Viana*Évora*Portugal

domingo, 8 de março de 2015

30 - NA ESTRADA DE DAMASCO * Queda




Para o poeta José Ferreira Marques de Sousa


De barro e de água, a massa a modelar.
Artista, a mão ensaia conceber.
No céu, azul, o manto tutelar.
Humana, a vida vai acontecer.

Milagre foi a luz no meu olhar.
Desgraça o nunca ter sabido ver.
Do medo fiz a pedra de um altar…
E nem assim me soube merecer.

Deixei a vida em mim entretecer
a malha carmesim, em avatar
ferido só de nada e de não-ser.

E desde a queda, expulso do meu lar,
até ao fim do meu acontecer,
apóstata, persisto em me negar…



José-Augusto de Carvalho
25 de Janeiro de 2004.
Viana*Évora*Portugal




36 - TEMPO DE SORTILÉGIO * No milagre que te trouxe...





Vestida de papoilas, me sorrias...



Aurora em sangue, o grito da manhã!

Chegavas do Jardim. Nas mãos trazias, 

p'ra mim, intacta, a mítica maçã.



Olhei-te no milagre que te trouxe.

As dúvidas p'ra longe arremessei.

Maná ou perdição, fosse o que fosse,

abri a boca, em êxtase, e trinquei.



Senti um gosto azul, a firmamento,

lavado dum perfume de alfazema,

um néctar palestino de vindima. 



Em cantilena pura, a voz do vento.

louvava em versos de oiro o teu poema,

e flor só quis amor em vida e rima.






José-Augusto de Carvalho
12 de Março de 2005.
Viana*Évora*Portugal






sábado, 7 de março de 2015

36 - TEMPO DE SORTILÉGIO * Um entre tantos...





De esperas é meu tempo de esperança.

A sede sempre em busca de alvas fontes.

Os astros tremeluzem fulva dança.

Meus olhos são da cor dos horizontes.



Meus passos rasgam rotas no caminho.

Dos astros que me guiam sou devoto.

Ai, que me importa o vento em torvelinho

se sou, transfigurado, o longe ignoto?



O tempo por mim passa e me consome

e pelo tempo eu passo e quero ser,

efémero no ser, o movimento.



Um entre tantos, sou só mais um nome

enquanto quem me quer não me esquecer,

enquanto houver canções na voz do vento.





José-Augusto de Carvalho
7 de Fevereiro de 2005.
Viana*Évora*Portugal

sexta-feira, 6 de março de 2015

35 - CANTO REVELADO * Inquietação







Pequena é sempre a pátria que nos gera.


A nossa condição não tem fronteiras.


Se ser é recusar, quem degenera


e fica no não-ser das carpideiras?






De Norte a Sul, do Leste ao Ocidente,


o Mundo é um, de facto e de direito.


Em nós, a vida que palpita e sente


é água no caudal do mesmo leito.






Do mesmo tecto azul que nos abriga


ao mesmo chão que tudo nos garante,


nós temos por comum o quanto houver.






Se todos temos tudo por bastante,


que vento de discórdia alguns instiga


e o que é de todos só de uns poucos quer?





José-Augusto de Carvalho
6 de Junho de 2005.
Viana * Évora * Portugal

quinta-feira, 5 de março de 2015

09 - IN MEMORIAM * Pablo Picasso





Dom Pablo era malaguenho,

bem do Sul da Andaluzia.

Se foi génio no desenho,

na pintura foi magia.



Deu sonho às suas Espanhas 

de gentes, lendas e cores...

Chorou, nas suas entranhas,

feridas, ódios e dores.



Em Guernica foi o grito

desmascarando os horrores

da barbárie sem perdão;



na pomba, as asas do mito

erguendo um altar de flores

à Paz, do berço ao caixão.







José-Augusto de Carvalho
14 de Janeiro de 2006.
Viana * Évora * Portugal