sábado, 20 de junho de 2015

10.01 - OS MEUS AMIGOS * José Augusto Carvalho



O Deus dos ateus


Professor Doutor José Augusto Carvalho



José Augusto Carvalho


O pouso forçado do avião em que viajavam os apresentadores Huck, Angélica, filhos, babás, o piloto e o copiloto foi bem-sucedido graças à perícia do piloto Osmar Frattini. A apresentadora disse que todos sobreviveram por milagre, mas não vi na reportagem de A Gazeta (do dia 16-05, p. 8-9) nenhuma alusão à pretensa ajuda de Deus, mesmo porque Deus teria sido de melhor ajuda, se o acidente não tivesse ocorrido. Milagre, se houve, foi do piloto. O fato de ninguém ter mencionado Deus fez-me pensar.

Acho que foi Dostoievsky, talvez em Crime e Castigo, quem disse que, se Deus não existisse, tudo seria permitido. Parece que a ideia é a de que sempre haverá alguém a quem devemos prestar contas de nossos atos. A contrapartida é mais lógica. Não acreditar em Deus significa acreditar em si mesmo, tomar suas próprias decisões, pagar pelas escolhas indevidas, crer no livre arbítrio. Afinal, se, por definição, Deus é bondade, então tudo será perdoado. Além disso, por Sua onisciência, Deus vê tudo, prevê tudo e sabe tudo. Portanto Ele sabe previamente se vamos pelo caminho do bem ou da perdição. Se Deus existe, nosso destino já está traçado e nada podemos fazer para modificá-lo.

Se a pessoa que crê em Deus faz uma promessa para a obtenção de uma graça, Deus, por antecipação, já sabe se ela vai ou não cumpri-la. Se a promessa não for cumprida é porque já estava escrito que ela não seria cumprida. Se Deus existe, quem não cumpre uma promessa não tem culpa de nada. A mentira, o assassinato, o roubo, todas as más ações já estão previamente traçadas pelos desígnios de Deus. Ao contrário do que disse Dostoievski, se Deus existe, tudo é permitido.

Um deísta ou teísta poderá dizer que Deus sabe qual será nosso próximo passo, mas, como não sabemos, temos de agir como se nada estivesse previsto, o que não evita o resultado final, porque, seja qual for nossa intenção, o destino já está traçado.

Cristo previu que Pedro o enganaria três vezes e estava também previsto que Judas O trairia. Pedro, por mais que quisesse, não poderia furtar-se à praga que Jesus lhe lançou. Nem Judas poderia, ainda que fosse puro de coração, evitar trair o Messias. Dessa traição nasceu uma nova religião, uma nova Igreja. Pedro e Judas foram vítimas de um destino cruel que lhes estava reservado à revelia. Em outras palavras: Jesus veio ao mundo para ser traído, para ser crucificado. Judas foi uma vítima do seu destino previamente traçado. Não tem culpa de nada. Se Deus não existe, então o Homem é que traça seu próprio destino. O ateu, na verdade, é Deus de si mesmo.


(Publicado no dia 29-05-15, em A GAZETA, 1º caderno, p. 17)

quinta-feira, 23 de abril de 2015

10.01 - OS MEUS AMIGOS * José Augusto Carvalho


HAICAIS IRRELEVANTES

Prof. Doutor José Augusto Carvalho



*
Para cada quem sua ambição:

É o tamanho da fome

Que mede o valor do pão.

*

O sentido da vida consiste

Em procurar para ela

Um sentido que inexiste.

*

Eis um poeta da gema:

O vento que agita as ramas

Segreda um longo poema.

*

Minha crença é esta, em suma:

Deus, antes de criar tudo,

Não tinha idade nenhuma. 

*

Algodão entre cristais,

A minha vida parada

Passa depressa demais.

*

Nascer, morrer – ida e chegada...

O homem é uma frágil ponte

Ligando um nada a outro nada.

*

Tem dois lados toda fama:

O sopro que aviva a brasa

Apaga também a chama.

*

O que mais dói no meu ser:

As coisas que não fiz bem

E as que não pude fazer.

*

Ir ao topo é uma ambição.

Quanto mais alto subimos,

Melhor é a nossa visão. 

*

Minha angústia é exemplar:

Eu me perdi de mim mesmo,

Quando tentei me encontrar.

*

Não sou bom, não sou mau. Eu sou assim:

Perdi a infância e a adolescência, e tanto

Que me tornei o que sobrou de mim.

*

Ideal que me proponho:

Sonhar a vida que levo,

Levando a vida que eu sonho.

*

A criança que há em mim desponta

E eu invento a minha vida

Num mundo do faz de conta.

*

Uma verdade sem graça:

A gente morre um pouquinho

A cada dia que passa.

*

Perdão a mim mesmo rogo:

Matei em mim a criança

Na ânsia de crescer logo.

*

Da religião foi o diabo o inventor

Para que o homem ingenuamente o sirva

Mas na ilusão de que serve ao Senhor.

*

Perdoe-me se sou assim,

Mas eu me tornei o resto

Do que soçobrou de mim.

*

Se Deus é onipresente, além de eterno,

E se o inferno é algum lugar que existe,

Deus certamente está também no inferno.

*

O mundo que eu sonho rui,

E resta só a saudade

Daquilo que eu nunca fui.

*

Criado o mundo, Deus, com a alma cansada,

Quis descansar, espreguiçou, dormiu,

E desde então não quis fazer mais nada.

*

Cansado de não ter uma plateia

Deus fez o homem pra ser adorado

E ainda não viu burrice nessa ideia.

*

O poeta é um pioneiro

Que banca o artista de um circo

Sem lona e sem picadeiro.

*
O poeta é um pioneiro

que banca um artista de circo

sem lona e sem picadeiro.



Para cada quem sua ambição.

É o tamanho da fome

Que mede o valor do pão.

*



Cidade de Vitória
Estado do Espírito Santo
Brasil

segunda-feira, 9 de março de 2015

05 - ESTA LIRA DE MIM!... * Divagando




Nas margens do Vouga, a presença termal.
Respiro, no tempo, a memória amarela:
dos ontens distantes, um ténue sinal:
dos hojes, o rosto que a mágoa cinzela.

O vale verdeja. Humidade e suspiros.
A vaga esperança aos enfermos acena.
Veredas descobrem sossego e retiros
lavados de vento, a arfar cantilenas.

Perladas de mágoas, as águas do rio
espumam, noivando, incertezas de sal.
Angústias de ser… o fatal desafio
que tarda em cumprir-se país-Portugal.

Vaivém de marés… na distância adivinho
o pão levedado de alvura de linho.



José-Augusto de Carvalho
3 e 4 de Novembro de 2003.
Várzea, São Pedro do Sul

30 - NA ESTRADA DE DAMASCO * Posição





Que distracção! Confesso o meu pecado
de ter nascido sem pedir licença.
Dos longes donde vim, maravilhado,
nascer não é pecado nem ofensa.

Dos longes donde vim, na graça imensa,
nascer é o milagre revelado.
No grito da promessa, a recompensa
do sonho feito verbo conjugado.

Pecado é não cumprir a lei da vida,
é dizer não ao sol que inventa o dia
e à noite debruada de luar.

Pecado é esta lei animicida,
no sonho aniquilando a melodia
e o meu direito vivo de cantar.



José-Augusto de Carvalho
9 de Novembro de 2003.
Várzea, São Pedro do Sul


09 - IN MEMORIAM * Brasil




Eu soube do Brasil na minha meninice,
aqui, no meu torrão de angústias e de esperas.
A minha tia-avó, no sol das primaveras,
buscara longe o sol que vivo lhe sorrisse…

Levou só orfandade e pranto por bagagem,
Que mais, madrasta, a pátria amada lhe negou.
Menina e luto em mar de medo e de coragem,
a pátria prometida um dia desposou.

E tão constante foi, menina, o seu amor,
que, pura, deu à terra amada quanto tinha.
Há quanto tempo foi? Seja o tempo que for!

Há sangue brasileiro ainda igual ao meu,
sofrendo uma saudade ainda igual à minha
de um tempo que no tempo há muito se perdeu



José-Augusto de Carvalho
Março de 2004
Viana*Évora*Portugal

30 - NA ESTRADA DE DAMASCO * Ansiedade





Louvado seja Deus,
que fez a Terra  e os Céus,
só vejo fariseus
e eu no banco dos réus!

Passaram dois mil anos
E há os meus grilhões
e há os mesmos tiranos
e os mesmos vendilhões!

O tempo está cumprido!
A mentira vigora!
Temendo que se exponha,

o agonizante ungido
ainda o fim implora
do tempo da vergonha!




José-Augusto de Carvalho
Lisboa, 4 de Agosto de 1993.


32 - DO MAR E DE NÓS-2 * Brasil





Não temas que eu caminhe! A bússola é segura.
E a minha mão domina o leme com mestria.
O vento, de feição, garante a travessia.
E o teu olhar lucila até na noite escura.

Há muito que este mar conhece a barca lusa…
E não me vai perder em trágico baixio.
Agora já não há sereia que seduza…
A barca irá chegar às águas do teu Rio!

O largo mar será e sempre muito estreito…
Distâncias a vencer, meu único destino.
No verbo navegar só eu sou o sujeito…

Sossega o teu temor! Eu chegarei ao fim!
Procela e medo e mar há muito que domino.
Há séculos que sou o delírio de mim!...



José-Augusto de Carvalho
Abril de 2002.
Viana*Évora*Portugal

domingo, 8 de março de 2015

30 - NA ESTRADA DE DAMASCO * Queda




Para o poeta José Ferreira Marques de Sousa


De barro e de água, a massa a modelar.
Artista, a mão ensaia conceber.
No céu, azul, o manto tutelar.
Humana, a vida vai acontecer.

Milagre foi a luz no meu olhar.
Desgraça o nunca ter sabido ver.
Do medo fiz a pedra de um altar…
E nem assim me soube merecer.

Deixei a vida em mim entretecer
a malha carmesim, em avatar
ferido só de nada e de não-ser.

E desde a queda, expulso do meu lar,
até ao fim do meu acontecer,
apóstata, persisto em me negar…



José-Augusto de Carvalho
25 de Janeiro de 2004.
Viana*Évora*Portugal




36 - TEMPO DE SORTILÉGIO * No milagre que te trouxe...





Vestida de papoilas, me sorrias...



Aurora em sangue, o grito da manhã!

Chegavas do Jardim. Nas mãos trazias, 

p'ra mim, intacta, a mítica maçã.



Olhei-te no milagre que te trouxe.

As dúvidas p'ra longe arremessei.

Maná ou perdição, fosse o que fosse,

abri a boca, em êxtase, e trinquei.



Senti um gosto azul, a firmamento,

lavado dum perfume de alfazema,

um néctar palestino de vindima. 



Em cantilena pura, a voz do vento.

louvava em versos de oiro o teu poema,

e flor só quis amor em vida e rima.






José-Augusto de Carvalho
12 de Março de 2005.
Viana*Évora*Portugal






sábado, 7 de março de 2015

36 - TEMPO DE SORTILÉGIO * Um entre tantos...





De esperas é meu tempo de esperança.

A sede sempre em busca de alvas fontes.

Os astros tremeluzem fulva dança.

Meus olhos são da cor dos horizontes.



Meus passos rasgam rotas no caminho.

Dos astros que me guiam sou devoto.

Ai, que me importa o vento em torvelinho

se sou, transfigurado, o longe ignoto?



O tempo por mim passa e me consome

e pelo tempo eu passo e quero ser,

efémero no ser, o movimento.



Um entre tantos, sou só mais um nome

enquanto quem me quer não me esquecer,

enquanto houver canções na voz do vento.





José-Augusto de Carvalho
7 de Fevereiro de 2005.
Viana*Évora*Portugal

sexta-feira, 6 de março de 2015

35 - CANTO REVELADO * Inquietação







Pequena é sempre a pátria que nos gera.


A nossa condição não tem fronteiras.


Se ser é recusar, quem degenera


e fica no não-ser das carpideiras?






De Norte a Sul, do Leste ao Ocidente,


o Mundo é um, de facto e de direito.


Em nós, a vida que palpita e sente


é água no caudal do mesmo leito.






Do mesmo tecto azul que nos abriga


ao mesmo chão que tudo nos garante,


nós temos por comum o quanto houver.






Se todos temos tudo por bastante,


que vento de discórdia alguns instiga


e o que é de todos só de uns poucos quer?





José-Augusto de Carvalho
6 de Junho de 2005.
Viana * Évora * Portugal

quinta-feira, 5 de março de 2015

09 - IN MEMORIAM * Pablo Picasso





Dom Pablo era malaguenho,

bem do Sul da Andaluzia.

Se foi génio no desenho,

na pintura foi magia.



Deu sonho às suas Espanhas 

de gentes, lendas e cores...

Chorou, nas suas entranhas,

feridas, ódios e dores.



Em Guernica foi o grito

desmascarando os horrores

da barbárie sem perdão;



na pomba, as asas do mito

erguendo um altar de flores

à Paz, do berço ao caixão.







José-Augusto de Carvalho
14 de Janeiro de 2006.
Viana * Évora * Portugal

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

34 - CLAVE DE SUL * Um dia, pela Primavera...




Era Maio, no Alentejo,
e madura, madura para a foice, a promessa do pão.


Eu completaria 17 anos de idade, em Julho.


Tu tinhas completado 26 anos, em Fevereiro.


Os meus olhos de adolescente já enxergavam o futuro sombrio que me esperava…


Os teus olhos de jovem mulher já viviam o futuro sombrio…
Morreste de morte matada porque pediste trabalho e pão.


Ai, Catarina, no Alentejo,
morria-se de morte matada porque se pedia trabalho e pão!


Ai, Catarina, no Alentejo,
era subversivo o pedido de trabalho e pão!


Ai, Catarina, no Alentejo,
era subversivo ser pobre e pedir trabalho e pão!



Ai, Catarina, no Alentejo,
havia pão nos celeiros,
havia pão para todos,
mas o pão não era de todos!...


Ai, Catarina, no Alentejo,
até era subversiva a partilha do pão anunciada pela boa-nova!


Ai, Catarina, no Alentejo,
quiseram o sacrifício do teu sangue, que não se transmutou em vinho!
Quiseram o sacrifício do teu corpo-vida, que não se transmutou em pão!


Ai, Catarina, no Alentejo,
as terras ensanguentadas insistem desesperadas em acreditar
nas utopias que sempre são matadas.


Ai, Catarina, no Alentejo,
haverá sempre um manto de papoilas, pela primavera,
gritando a simbologia do sangue derramado e duma terra ocupada.


Ai, Catarina, no Alentejo,
um dia, pela primavera… Quando? Quando?




José-Augusto de Carvalho
Alentejo, 23 de Janeiro de 2015

domingo, 1 de fevereiro de 2015

14 - ESCAPARATE * O desaforo




Aos Autores antologiados não será solicitada nem oferecida nenhuma contrapartida para a participação na obra, não serão igualmente ofertados exemplares da mesma.


Todos sabemos que a escrita é anterior à actividade editorial.

Todos sabemos que a actividade editorial decorre da escrita ou, dito de outra maneira, sem autores não há editores.

Assente esta realidade que não oferece contestação, chega-me a surpresa absurda de uma editora convidar autores para colaboração numa amostragem de autores actuais, vulgo antologia, mas desde logo informando que esses mesmos autores não terão direito a receber um volume de oferta ou, mínimo dos mínimos, a um volume a custo reduzido.

Ocorre, assim, esta situação: a editora recebe a colaboração, edita-a, comercializa-a e os autores recebem o prazer de ver os seus trabalhos editados. Edificante!

Que imperativos legais impedem os autores de se associarem e combaterem este desaforo?

Até sempre!

José-Augusto de Carvalho
Alentejo, 1 de Fevereiro de 2015.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

14 -ESCAPARATE * Pátria Transtagana, em Estremoz

Biblioteca Escolar Almeida Garrett, 11/12/2014

Da nossa esquerda para a direita.
Coronel João Andrade da Silva, José-augusto de Carvalho,
Professora Rosa Barros e Professora Doutora Maria do Céu Pires


Aqui deixo aos prezados leitores deste espaço o texto da minha intervenção:

11 de Dezembro de 2014, em Estremoz!

Entendeu a vontade dos homens que eu buscasse longe o que o nosso pátrio Alentejo me devia.
A vontade dos homens que tinham poder para impor a sua vontade aos outros.
A vontade dos homens que determinavam que a nossa amada Pátria Transtagana recusasse a muitos dos seus filhos o direito natural de viver na sua terra.
Lá fui! Segui de comboio até ao Barreiro; cruzei o rio Tejo; chegava a Lisboa. Deixava para trás o meu mundo e a minha gente.
Difícil é viver em terra estranha!
Lisboa acolheu-me, indiferente. Mais um, menos um, na migração, não aquentava nem arrefentava, no dizer de Mestre Aquilino, ainda que noutro contexto.
Por lá vivi quarenta e dois anos, sempre sonhando regressar. E o sonho ganhou forma e realidade em Junho de 1996.
Ganhei a vida, estudei por conta própria o que mais me interessava, aprendi o pouco que sei. E escrevi versos e mais versos; e publiquei três livros: arestas vivas, 1980; sortilégio, 1986; tempos do verbo, 1990.
De 1961 a 1973, trabalhei graciosamente no jornal República, mais exactamente no Suplemento República das Letras e das Artes, sob a responsabilidade do poeta Alfredo Guisado, amigo de Fernando Pessoa e seu companheiro na aventura do Orfeu, em 1915.
Neste suplemento publiquei, em Outubro de 1969, apanhando a Censura distraída, o meu poema «O maltês». Vivia-se, então, em período de campanha eleitoral. Foi quando votei pela primeira vez. Teria de esperar por Abril de 1975 para votar de novo.
Foi com «O maltês» que terei conquistado alguns benevolentes leitores.
Aqui fica o poema:

Já fui maltês e ladrão
de quanto me foi roubado.
Meu covil foi o montado;
meu camarada, o suão.

Fui livre à minha maneira,
como um homem deve ser;
a lei dei a conhecer
da mira da caçadeira.

Por roubar o que era meu,
nas malhas bem apertadas
das baionetas caladas
caí num dia danado,
mas contas ninguém me deu
de quanto me foi roubado.


Em  25 de Abril de 1974, acreditei na Primavera!
E acreditei nos homens que traziam a esperança!
Ah, mas Abril, logo no seu primeiro dia de Primavera, sangrou às mãos dos esbirros da negação!
Aquele dia inesquecível chorou a morte matada de alguns que tão pouco viveram para glorificar a aurora!
Em Lisboa, vivi a alegria de ver gente da nossa gente transtagana na luta honrada e nobilíssima de despertar um povo da longa noite da negação da Vida.
Meus amigos, gente da nossa gente, a mesma que tombou em Atoleiros, que tombou em Aljubarrota.
Gente da nossa gente, a mesma que tombou em Évora, em 1638, anunciando a futura Restauração, em 1640!
Gente da nossa gente que tanto contribuiu para que o despotismo ajoelhasse sem condições na nossa Evoramonte, em 1834!
Desta nossa gente me reclamo!
Esta gente que é nossa e que glorifico por ter sempre cumprido o seu dever nos campos, nas minas, nos mares, nas demais actividades que a divisão social do trabalho exige, na luta armada, na dádiva suprema do sangue derramado por si e pelos outros.
Por tudo isto, o meu dever de amar e de cantar, como posso e sei, a Pátria Transtagana.
E neste meu amar e neste meu cantar glorifico igualmente todos os compatriotas da Pátria Portuguesa que tudo deram de si para que todas as regiões, que não apenas a transtagana, sejam parte da Humanidade em movimento rumo à dignificação humana.
É nas horas difíceis que o Homem se transcende. Assim foi no passado que recordamos com emoção; assim será neste presente que vivemos.
Vivi o último momento de emoção até às lágrimas em 1974, quando a Revolução dos Cravos devolveu a todos nós uma Pátria Livre. Como escrevi recentemente…

Nostalgia

Mais um Inverno frio nos deixava…
Mais uma Primavera prometia…
E sempre uma esperança pontilhava
de estrelas este céu que se fechava
ao rútilo esplendor dum claro dia!

E sempre esta esperança que morria
em cada frustração que nos matava!
E sempre o desespero arremetia
na força renovada que nos dava
a Fénix que das cinzas renascia!

Ai, tanto se morria e renascia!
E sempre esta esperança acalentava.
Que fértil terra de húmus e porfia
a força dava à força que faltava
nas horas em que a vida mais doía?

De sangue e desespero se amassava
o pão que noite adentro se comia!
De sol a sol, o corpo tudo dava
a troco duma jorna que minguava
enquanto o desespero mais crescia.

Ah, mas, na sombra, a noite murmurava
enleios, numa terna melodia!
E antes de adormecer, já madrugava
nos versos da canção que prometia
livre e fraterna a terra que chegava!

Chegava a Liberdade que cantava
lusíada, em feliz polifonia,
o fim do pesadelo que matava
no dia todo em luz que despertava
a vida que chorava de alegria!

O pátrio povo em armas devolvia
o berço que das trevas libertava
ao povo que sem armas acudia.
E um povo todo irmão se estremecia
no imenso e terno abraço que se dava.

Navegar é preciso, prometia,
agora que o viver se precisava!
Nos braços embalada, a pátria ouvia!
E quanto mais ouvia mais se dava
ao sonho que se ousava e florescia.


José-Augusto de Carvalho


terça-feira, 20 de janeiro de 2015

10.01 - OS MEUS AMIGOS * José Augusto Carvalho


ASSÉDIO SEXUAL


José Augusto Carvalho



Burro por onde passa deixa a marca da ferradura. 

*

Johnathan tinha quase sete anos. Era puro, era pequeno, era criança. Não tinha ainda sete anos.

A escola de Johnathan, em Lexington, na Carolina do Norte, era bonita. Talvez fosse a mais bonita daquela pequena cidade americana, plantada no condado de Davidson.

E era bonita porque Johnathan tinha quase sete anos.

A cidade de Johnathan era pequena e era bonita. Não era talvez a menor de todas, mas era talvez a mais bonita de todas as cidades pequenas e bonitas que há nos Estados Unidos.

E era bonita porque Johnathan tinha quase sete anos.

A sala de aula de Johnathan era pequena. Nela só havia vinte alunos. Todos pequenos, todos crianças, todos com sete anos ou com quase sete anos. A diferença de idade entre o mais novo e o menos novo de todos não chegava a cinco meses.

Johnathan tinha quase sete anos, e era feliz, como todos os seus colegas de classe, como todas as crianças que têm pais que as amam e lhes dão carinho.

No dia 26 de setembro de 1996, Johnathan estava ainda mais feliz, porque era seu aniversário: ele estava completando sete anos de vida... Então ele olhou para a menina bonita que estava sentada ao seu lado, e quis manifestar sua alegria, dando-lhe um beijo no rosto.

Mas a professora viu. A professora de Johnathan não era feliz. A professora de Johnathan não era beijada por ninguém de sua idade. A professora de Johnathan não se lembrava mais da última vez que recebeu um beijo de alguém de seu tamanho. Por isso, a professora de Johnathan ficou com inveja e com raiva.

A professora de Johnathan decretou que Johnathan era um menino pecador e pôs Johnathan para fora de sala. A professora de Johnathan foi à direção da escola para dizer que Johnathan tinha praticado um crime chamado “assédio sexual”. A diretora da escola de Johnathan também tinha saudades do último beijo que havia recebido, e por isso também tinha raiva e inveja das pessoas que eram amadas e não tinham vergonha de ser felizes. A porta-voz das escolas públicas de Lexington, Jane Martin, apoiou a professora e a diretora, porque o regulamento da escola é de conhecimento dos pais.

Johnathan foi alvo de risos, de zombarias, de chacotas, de piadas. Ele vivia no país mais poderoso do mundo. Tão poderoso, que até um beijo de criança tinha sabor de pecado grave. Johnathan não podia mais ficar em Lexington, e teve de mudar-se de cidade, porque lhe haviam ensinado na escola do país mais poderoso do mundo sua primeira lição de antivida.

A escola de Johnathan já não era mais tão bonita. Porque os sete anos de Johnathan não tinham mais o sabor da infância.

E a cidade de Johnathan não era mais tão bonita, porque Johnathan se tornou quase um adulto, com sete anos de idade.

Mas o país onde Johnathan morava era o mais poderoso do mundo. Até depois de velho, Johnathan poderia orgulhar-se dele.

Alguns anos depois, num banho de mar, numa praia do Pacífico, o adolescente Johnathan viu que uma banhista se afogava à sua frente. Nadou até ela, arrastou-a como pôde, lutando contra o mar, até o lugar em que a espuma das ondas se infiltrava na areia... Mas lembrou-se do beijo que dera numa garota bonita de sua classe, quando de seu aniversário de sete anos. E deixou de lado, na areia, a mulher que tirara das ondas.

Johnathan não tinha mais apenas sete anos.

Os curiosos chegaram e notaram que a banhista não respirava mais. E perguntaram ao Johnathan por que ele não havia feito respiração boca a boca, para salvar a moça que ele tinha retirado das águas.

Johnathan não respondeu. Talvez para não perder o resto de infância e de pureza que ainda havia em sua vida adulta.

Porque Johnathan não tinha mais apenas sete anos.

Johnathan tinha virado cidadão do mais poderoso país do mundo.


José Augusto Carvalho é Professor Universitário jubilado.
Cidadão brasileiro, reside na cidade de Vitória, Estado do Espírito Santo, Brasil.